CAETANEANDO O QUE HÁ DE BOM
CAETANEANDO O QUE HÁ DE BOM
Marília L. Paixão
Olhou-se no espelho e sentiu-se ridícula. Engraçado como certas palavras incorporam a verdadeira idéia que as pessoas têm dela. Aquilo que ela estava vendo era o ridículo em pessoa: ela com a cabeça toda revirada de tinta. Tinta que nem sabia ao certo por onde tinha escorrido.
Muitos anos atrás ela achava que ridículo era quem gostava de Roberto Carlos enquanto ouvia Caetano caminhando contra o vento sem lenço e sem documento num sol de quase dezembro, o outro se sentia o verdadeiro negro gato de arrepiar que depois se dizia amante à moda antiga. E os jovens se arrepiavam fazendo gozação com quem ouvia o cantor Roberto Carlos. Muitos diziam que ele era o cantor das empregadas domésticas.
Tantos anos tinham ido córregos abaixo e agora ela via no jornal o show anunciado: os dois cantariam lado a lado. Se tivesse acontecido naquela época ia pensar que o Caetano tinha ficado doido. A juventude era mesmo transviada.
Entre as palavras mais perigosas dos diversos assuntos daquela época, aqueles mais escondidinhos surgiam sempre: droga, maconha, baseado, traficante, viciado, algum papo de fulana estar de barriga, cocaína, doença venérea, aborto, mulher de zona, piranha, motel. E ela lá com as suas fotonovelas contigo. Até que apareceram os livros que elas teriam que ler escondido dos pais. Não era aqueles que podiam ficar soltos sobre a cama tipo O pequeno príncipe.
Lembrava-se perfeitamente de dois que lhe foram parar nas mãos pela primeira vez: Adelaide Carraro e outro de autor com nome Inglês. O que será que tinha ali que tinha que ler escondido? Pensara. Não sabia qual ler primeiro. Na sorte foi pelo nome mais fácil: Adelaide Carraro. A colega lhe dissera que o livro era um sarro! Era uma história de final triste, onde a mocinha era enganada pelo patrão, ficava de barriga e ia para a rua. Depois de ganhar a barriga não ganhava mais nada e o tal do sexo que era tão descrito era a coisa proibida do livro. E ai ela entendeu que aquilo era proibido mesmo!
Imagine o tanto que apanharia se a mãe lhe pegasse com aquilo. O outro livro era pior ainda! Era história de encontros para grupos de casais participarem de uma festa onde só ia gente rica e no final um ficava com a mulher do outro, uma bagunça danada. Estava aprendendo coisas com aquele livro. Essas coisas não passavam em nenhuma novela. Tudo da história do livro acontecia no Rio e em São Paulo. Passou a pensar que Rio e São Paulo eram lugares em que aconteciam coisas na vida de outras pessoas que na cidade dela ela nunca nem tinha ouvido falar. Aquele negócio de troca de casais ela nem sabia que existia. Ninguém falava sobre isso nem nas conversas mais baixinhas.
Mas teria que dizer para a amiga qual livro tinha gostado mais. Ela pensou um pouco em cada livro. O livro da autora brasileira era mais fácil de ler. Falava de homem de mais idade com meninas adolescentes e aconteciam muitas coisas de sexo que eram fáceis de entender porque tudo tinha os nomes das partes do corpo e tinha hora que até ela sentia coisas no corpo.
Ficava chocada com os dois livros e nem tinha com quem comentar. Também nem ia saber o que falar. Talvez aquelas coisas não eram coisas de ficar falando. Por exemplo, ficar falando do que ela lia e do que ela sentia. As reações do corpo como dizia a amiga. Como código ficou combinado que sempre que ela arrumasse um novo livro de histórias do corpo ela traria de novo. A amiga dizia que gostava de ler os livros que dava saudade dos sarros com o namorado. Ela ficou com vergonha de ouvir a amiga falando isso.
Depois começou a lhe chegar às mãos uns com as mesmas coisas e menos histórias e ela então falou para amiga que já não queria ler aqueles livros. Perguntou se ela não tinha outros. A amiga disse que a irmã dela tinha muitos livros, mas eram livros bobos, parecidos com os que as professoras mandavam ler nas escolas. E baixinho a amiga falou: “sem sexo”. – Traga desses para eu ler! Ela tinha respondido alto. – Sem as partes do corpo? Perguntou novamente baixinho a amiga só para confirmar. – Sim. Ela respondeu confirmando o código que não mais usaria.
Marília L Paixão
Enviado por Marília L Paixão em 27/08/2008
Alterado em 29/08/2008
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