O ESCORREGAR DO SABONETE
O ESCORREGAR DO SABONETE
Marília L. Paixão
Tocado, saiu da saboneteira. Dela escorregou para a beirada da pia e dali para dentro dela até voltar para as minhas mãos. Era verde, era branco. Comum como a maioria das criaturas. Fiquei pensando que sabonete era uma coisa que todo mundo usa e abusa. Afinal, quem não usa, usa o quê? Lavei bem o rosto para bem me ver. Me vi quase velha. Me vi quase moça. Me vi muito longe, menina. Mas foi bem longe mesmo! Passei mais água no rosto. Era melhor sacudir aquela visão e ver apenas a mulher que enxaguava o rosto. Todo mundo tem um rosto. Um, um, um. Os que têm mais de um, não deve ser muito gente boa. Não deve rir à-toa e quando ri não deve ser de verdade. Olhei-me bem e disse para mim mesma: -É bom ter um rosto só! É bom ter um sabonete branco ou verde e quando ele escorregar poder pegá-lo. É bom sair com o nosso único rosto do jeito que ele é e saber que ele nos pertence para sempre com tudo que vem junto. O bom de se olhar no espelho, além do susto dos anos que vira e mexe enxergamos de uma forma diferente, é sabermos que podemos contar com ele em cada nova história. Ele é cheio de novas letras. Estas não se resumem no brilho do nosso olhar. Através do nosso rosto aprendemos a enxergar um pouco do outro.
Todas as mulheres, depois de uma coleção de anos, devem ter desses mesmos pensamentos diante o espelho. Os homens também, claro! Mas as mulheres com certeza devem pensar muito mais. Imagino que para cada uma, estes momentos surgem em datas diferentes e por motivos diferentes. Umas com mais freqüência que outras. Outras o fazem até mais tardiamente. Depende do tempo que ela tem para ela mesma. Muitas, ao deixar um sabonete escorregar, podem até soltar uma interjeição ou um palavrão. Tudo depende da ocasião. Eu pensei que aquele escorregar tinha sido lindo. Deixei até que o fato se repetisse depois de lavado e secado o rosto, depois destes pensamentos todos.
Depositei o sabonete com a mesma pressa que o peguei a princípio e o devolvi para a saboneteira. Novamente ele retornou para a beirada da pia e escorregou para dentro dela. Escorregava feito um jatinho.
Se eu ficasse ali brincando com aquele sabonete poderia deixar voltar ao espelho a imagem do rosto infantil que não se preocuparia com a água da torneira a cair durante a viagem. Mas a imagem real daquele rosto de mulher que eu via, era a que decidiu que aproveitaria da queda do sabonete para transformá-lo em letras, mesmo se fossem simples letras sem perfume. A verdadeira beleza está nos olhos de cada um. Há dias em que me vejo bela. Há um dia em dez em que me vejo bem feiticeira. Importante é gostarmos da nossa imagem verdadeira.
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Marília L Paixão
Enviado por Marília L Paixão em 10/11/2007
Alterado em 11/11/2007
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